terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O ESPELHO DA ILUSÃO


A ilusão é ver o que não se vê
e crer, apesar disto,
que o que vemos o não é,
ou porventura foi  mal visto.

E então pomos de lado
o tacto, o paladar a vista, o ouvido
e até o cheiro é negado
invocando um sexto sentido.

domingo, 29 de janeiro de 2017

SOBRE O AMOR


Outrora eram bem aceites os poemas,
que escrevia sobre o nosso amor
e o fumo etéreo dos cigarros.
O jazz ocupava-se do ambiente tranquilo,
a noite corria sem pressa nem lugar para onde ir.
Com o tempo, as estrofes perderam muito
da poesia de então; o tabaco
foi escorraçado do bar e até o jazz
substituíram por outros sons menos inconvenientes.
O amor, nascido sem pressa nem prazo de validade, permanece.
É sobre ele que te escrevo agora estes versos.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES


Eram anões todos eles,
constam sete,
do mais ousado ao mais reles.
Sete, nem mais nem menos: sete.

Garimpeiros de profissão e passatempo
(os anões) cantavam trá-lá-lá
por contentamento
e para a princesa, claro está.

Veio então a bruxa e a maçã,
que juntas são veneno e são ciúmes,
a morte temporã
nesta história de costumes.

Mas aqui não houve jornais
Interessados na bruxaria
e se houve magistrados e tribunais
ficaram em banho-maria.

Houve um príncipe neste ensejo,
que fez as vezes dos juízes,
dando à princesa um beijo
e foram muito felizes.

Contei de novo a história,
eis a prova:
se a tinha ainda na memória
como poderia ser uma história nova?

Por que havia de inventar
uma justiça que morde e não beija
e a morte que não seja a brincar
assim, servidas de bandeja?

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

NA MINHA MODESTA OPINIÃO


Para quê ateimar,
se digo sim e você não.
Uma coisa é opinar
outra é ter razão.

Uso do contraditório,
admito.
Sempre dá mais falatório
e, se fizer falta, repito.

Em vez de bomba, botija;
em vez de bronco, bronquite.
Mas, `spere aí, não se aflija,
é apenas um palpite.

Isto de opinar tem
muito que se lhe diga:
o doador é quem
com a doação fica.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

PICUINHAS


1.
-uma reclamação?
-uma pergunta:
por que têm os pregos
o bico do mesmo lado?
-de que lado?
-do lado do bico, claro.

2.
-não dá para estacionar
-como não dá?
-é contra o meu feitio
-mas se cabem lá dois
-por isso mesmo: é desperdício.

3.
-é cedo ainda
-falta apenas uma hora
-não espero
-perde a vez
quando volta?
-daqui por uma hora.

sábado, 21 de janeiro de 2017

DA LÍNGUA PORTUGUESA


Esbanjamos as palavras até à míngua,
rudes garimpeiros de águas turvas;
na verdade, maltratamos a língua,
vendemo-la e estamos aqui p’ras curvas.

Essa que os eruditos dizem de Camões
e aos poetas dá tantas dores de cabeça,
anda por aí aos acordos, aos encontrões,
fingindo não haver mal que lhe aconteça.

No escrever e no falar é dor d’alma,
ver a língua tratada de qualquer maneira:
ao bom senso não se dá a palma
e no fim ou entra mosca ou sai asneira.

Também os tempos verbais e as corruptelas
já não dão para ninguém ficar calmo,
até um dia andarmos às apalpadelas
e pagarmos, bem pago, com língua de palmo.

Uns, porque o que mais importa
é que, em síntese, a gente se entenda;
outros, porque das regras fazem letra morta,
não tardará quem ponha a língua à venda. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

DOS PÁSSAROS

~
Que dirão de nós os pássaros,
se se importam com a coexistência humana
e a ancestral inveja do imenso céu
em que vivem.
Que dirão de nós os pássaros,
se algum dia julgaram útil engaiolar-nos,
pelo prazer de nos ouvir barafustar
uns com os outros e com o mundo
em volta do cativeiro, imaginando que cantamos.
Que dirão de nós os pássaros,
se a nossa ridícula alma é o pouco que em nós voa,
se é que temos alma.
Que dirão de nós os pássaros?


terça-feira, 17 de janeiro de 2017

A IMPORTÂNCIA DAS PEQUENAS COISAS


A ravina do olhar com lágrimas,
essa mesma, a que permite a queda
do céu carregado de estrelas
sem nunca chegar ao fundo;
a ravina para onde empurro
tudo o que não quero ver ou sentir,
incluindo as lágrimas
e demais subtilezas da alma que há em mim
é onde guardo as pequenas coisas.

Há dias salvei de morte certa
o que restava duma folha branca
separada do bloco de apontamentos.
Escrevi um recado breve
e pu-la bem à vista de quem o precisasse.
Foi alvo de todas as atenções
durante o período activo de validade.
Depois afundou-se na ravina
do olhar com lágrimas, essa mesma,
a que permite a queda
do céu carregado de estrelas
sem nunca chegar ao fundo. 

domingo, 15 de janeiro de 2017

PRAÇA DAS PALAVRAS


Uma procissão de palavras com maior
ou menor sentido, encharcadas de fé ou fértil imaginação,
caminha com devoção à frente do poema.
Alguma serventia terão. Mas não será por isso
que o céu a todas abrirá os portões de ouro e mogno
- que, sendo o céu o que é, assim deverá ser –
porque agora é tarde e faz tempo que o poema deixou a praça.
Ide, digo-lhes, por hoje é tudo,
amanhã  haverá nova safra e tudo começará de novo.
Cabisbaixas, regressam aos subúrbios da memória.
Oiço-as grazinar à medida que se afastam
porque é com elas que eu também regresso
e ao poema não importa a minha ausência.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

FEIJÃO VERMELHO


Quem consome
feijão de fome
é bicho ou “home”
quem o come?

Feijão vermelho
é ditado velho
no evangelho
em pé ou de joelho(s)

Alimento forte
tê-lo é uma sorte
para ganhar porte
sem desnorte

Não meter bedelho
em feijão do aparelho
dizem é conselho
que no entanto é vermelho.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

MAIS CAMINHOS


Um caminho na terra não é
um caminho de terra, porém,
indo de cavalo ou a pé,
caminho é ir até além.

E, estando além, volta a ser
caminho aquele já percorrido:
caminho voltamos a ter
depois do caminho cumprido.

Então volvemos ao lugar
de onde partíramos à ida,
que à volta teremos de aceitar
tornar ao ponto de partida.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

EDIÇÃO ESPECIAL


Quando realmente se gosta de alguém,
é queimar-lhe a seara e, em jeito de ajuda humanitária,
usando os mesmos aviões, despejar-lhe pães.

A caridade é uma bomba pronta a deflagrar
e distribuir a produção excedentária
por um lugar no céu senão à beira mar.

sábado, 7 de janeiro de 2017

NOTAS SOLTAS


Perverso é procurar
o mar num verso;
o inverso
é se o verso naufragar.
Mas se de tanto porfiar
der à costa, controverso,
está no verso
e está no mar;
é face e verso.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

DEBAIXO DA PONTE


Em noite sem nuvens é vulgar
ter no céu por horizonte
o brilhante esplendor do luar.

Incomum, se queres que conte,
é a lua indigente pernoitar,
minguante, debaixo da ponte…

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

CÍCLO



Às vezes parece que a natureza se revolta:
a brisa reconfortante e as árvores ramosas,
que apenas deixam perpassar finíssimos raios de sol,
dão lugar a violentas tempestades.

Voltará a calmaria mas eu e a natureza
teremos já perdido a inocência.


domingo, 1 de janeiro de 2017

NATUREZA VIVA


De naturezas mortas está tudo dito;
das vivas, e das que estão por nascer,
o pintor espera, paciente, o veredicto
de quem tem ainda que aprender.