sexta-feira, 29 de setembro de 2017

UMA RACHA NA PAREDE


Abriu uma racha na parede
e eu fiquei contente.
Não escandaliza nem fede,
é uma racha decente.

De contorno agradável,
porém em rápida progressão
é uma racha de saudável
esmero e contenção.

Em nada intimida,
perturba, a insana coexistência,
entre esta racha exibida
e a minha consciência.

Sensual, quem não acha
ter assim perto de si
uma ostensiva racha,
que enquanto cresce sorri?

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

LUCIDEZ



Dói-me a cada dia um pouco mais
esta minha incurável lucidez.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

BUGANVÍLIAS


Podia chamar-lhes sinos se não fosse a haste
(não a alma)
que as eleva; se não fosse pagão o meu quintal.
Sobem as paredes, voam como podem.
Toda a fragilidade se transforma em volúpia,
o pátio enche-se de vermelhas mariposas.
Esta manhã são a causa essencial do meu sorriso.

sábado, 23 de setembro de 2017

ABRIR CAMINHO


Tocando a carga a mando, dia a dia,
e ajoelhando aqui e ali, quando calha,
não dá para ver (não é vida nem é via)
com quantos paus se faz uma cangalha.

Um olho basta aos dois que nos assistem;
um olho só pode ver toda a jogada
que eles, por serem cegos, cumulam, insistem,
com quantos paus se faz uma jangada.

Só uma solução existe, só de um modo,
e esse é o nosso canto, a voz que soa:
assim verão (quando, enfim, formos um todo)
com quantos paus se faz uma canoa…

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

PLANO (INCLINADO)


Tenho um plano em mente;
inclinado é o plano, não mente,
pende para um lado, insistente,
o plano que tenho em mente.
Dito assim não parece plano,
é mais um pensamento insano,
como nódoa que cai no melhor pano,
por ora vai abaixo, pelo cano,

fica para o ano,
evidentemente.
É um plano
que tenho em mente.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

SUPERAÇÃO


A árvore não precisará de me escalar,
eu mesmo tomarei a iniciativa
de subir até à sua copa e de lá aceitar
o mundo, o que do mundo poderei ver.
Hei-de encontrar o modo de o fazer,
mesmo que a árvore não tenha tronco
e eu não tenha em que me apoiar,
mesmo que já não haja árvores no mundo
ou essa seja apenas uma desculpa minha.

domingo, 17 de setembro de 2017

TRISTEZA


Julguei triste a minha sopa de hoje
e era eu quem estava frio.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

DE PARTIDA



Parto. Levo as saudades escondidas
num embrulho pesado e clandestino
de muitas gerações. Não é por vergonha,
nem o peso de tanta mágoa me deixa lembrar
quanta verdade há entre o que digo
e o que realmente escondo e sinto em mim.

Sei que parto ou aos poucos vou partindo.
Parto de mim e isso quer dizer tudo: parto
como um pássaro que, arriba acima,
não sabe ainda se o golpe de asa lhe chega
para dobrar o pico e alcançar autonomia.
Contudo parto. Seja lá o que for a liberdade.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

ONDINA


Ondina veio de novo esta noite dar-me um beijo
enquanto dormia, enquanto sonhava,
enquanto me afogava nas águas de um pesadelo.
Ela conhece a minha respiração ofegante
e a estupidez da minha claustrofobia.
Diz-me que os seus beijos são terapia bastante
e as ondas sensuais do seu corpo são o embalo de que preciso.
Ela ama-me enquanto eu me amarro
de unhas e dentes ao bote que me leva mar adentro. 

domingo, 10 de setembro de 2017

TEMPO E HORAS


O tempo não é a corrida desenfreada
dos ponteiros do relógio.
Tempo e horas não são da mesma natureza:
horas são riscos, números, desencontros; e o tempo
uma nascente de água cristalina que se alarga
e ganha caudal, à medida que avança e dá lugar
a um mar de superfície azul, denso e de inquietude inexplicável.
Enquanto as horas se marcam e desmarcam,
favorecem ou molestam por serem horas boas e más,
faz tempo que o sangue me percorre as leiras
sequiosas e alimentam as minhas raízes sem fim.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

CEDO ERGUER


Sobre o ditado que diz
deitar cedo e cedo erguer
não passo de um aprendiz
sem saber o que fazer.

Dá saúde e faz crescer,
ditam as suas razões.
Mas para quê amanhecer,
se sabem tão bem os serões?…

Não cederei ao desplante
e fica assente, vou cumprir,
nem que para tal me levante
antes mesmo de dormir.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

PAPAGAIO DE PAPEL


Tive um papagaio de papel,
feito de canas, folhas de jornal
e um novelo de cordel
para a coluna vertebral.

E já no céu do céu,
de tão longe que se via mal,
aquele papagaio era o meu,
mais pequeno que um pardal.

Como os demais, voava,
esse era o meu intento.
Pobre na cor mas rodopiava,
que de cores não sabe o vento.


segunda-feira, 4 de setembro de 2017

PÁSSARO OCRE


Não era afinal de ouro
nem possuía riqueza,
e fosse embora tesouro
era-o por singela beleza.

Amarelo-torrado, canário,
tudo lhe ficava a matar;
profissional do canto, operário
de antes morrer que cantar.

Morreu ocre e mudo,
escravo do tudo ou nada,
sem liberdade e, contudo,
numa gaiola dourada.


sábado, 2 de setembro de 2017

PÔR-DO-SOL



O oceano e o céu ardentes,
como no fogo primordial
de achas rudes, incandescentes,
deste horizonte irreal.

Lá mais adiante falece
o meu olhar por delir de mais
e incrédulo por ver o que parece
o princípio e o fim, ambos reais.

Só porque o Sol sucumbiu
de novo à noite prestes a tombar
e o dia vivo por um fio
estrebucha de pavor e falta de ar.