quarta-feira, 30 de novembro de 2016

OUVIR


Envelhecemos como as pedras
e o primeiro sinal é não ouvir; ouvir mal.

Treinámos a vida inteira,
fomos selectivos , usamos filtros.

Mas agora não. É o sentido
que definha e morre o bicho do ouvido.

Às pessoas pedimos que repitam
e o tom da música temos de subi-lo.

Mas o chilrear dos pássaros
e o assobio da brisa nos ramos da árvores
não há como tê-los decorado:
é tarde agora para os aprender
a quem nunca lhes dedicou uma só ária. 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

COMO NASCE UM POEMA


Volto a estes pobres versos,
que se entranham na poalha
dos papeis onde estão imersos
como se fossem mortalha.

Vivos, asseguro que estão,
pois respiram ou, melhor dito,
arfam. Creio que é da solidão,
que deixa qualquer um aflito…

Puxo por eles. Como atrás disse,
são versos declinados, sem conteúdo,
nunca disseram nada que se ouvisse,
cuidando que ser verso é tudo.

Fui tentado mais uma vez
a deixá-los em repouso e sem stress.
Pensei: “como não há duas sem três
vamos ver o que acontece”.

Juntei-os aos demais dispersos,
fiz-lhes festas, dei-lhes carinhos
e concluí: o poeta é quem mima os versos
mas os poemas nascem sozinhos.

sábado, 26 de novembro de 2016

AGORA O TEMPO



O tempo cá vai andando
em passo outonal, a cores,
chuva e sol, variando,
conforme os seus humores.

Agora um frio de rachar,
(dizem, de cortar à faca)
não dá para apanhar ar,
nem espreitar da barraca.

É sempre a roda do tempo
que decide os pormenores,
salvo qualquer contratempo
do anticiclone dos Açores. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

IMAGINÁRIO


Há quem veja além…
o que não vê:
ilude, ilude-se, crê,
para ver o que convém.

Isto tem que se lhe diga,
fazer de conta que come;
arrisca morrer à fome,
com mais olhos que barriga.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O DIABO NÃO VEM



Rosnou e rogou praga
o inepto com desdém
e não há gente que lhe traga
nem diabo nem ninguém.

Tal era o bicho careto
(feio, chifrudo e mau)
que por vergonha ou medo
não passa de um cara de pau.

Tudo afinal está conforme.
Mas na certeza, porém,
que nem o povo dorme
nem o tal diabo vem.

domingo, 20 de novembro de 2016

A FACE E O VERSO


Se o mundo tivesse rosto
seria ainda mais evidente,
numa das faces o sol posto
e na outra o sol nascente.

Tal como a cara da gente,
que não seria suposto,
entrar em quarto crescente
com mataduras no rosto.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

DO DISCURSO


Não demovo
a cor ao cravo
e de novo demovo
a casca ao ovo

enquanto me comovo
com o cravo
como o ovo
e aprovo o cravo
uma ova a cor do ovo

pelo povo não demovo
a cor ao cravo

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

ELEIÇÃO



Carlota era uma mulher feliz
até que um dia, como agora diz,
procurou  taluda na matriz
e decidiu a questão com um xis.

Na verdade saiu-lhe furado
o intento de um bom resultado:
bom foi ele para o sítio errado;
acertou em cheio, mas ao lado…

Hoje grita: que “foi engano,
quis na conversa do fulano”
e agora lhe causa mais dano.

Carlota cuidou ser correcto
mas foi como engolir cianeto;
pior a emenda que o soneto!

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

POEMA DIURNO


Não nasce a noite em lugar algum:
a noite é somente a morte de mais um dia;
o intervalo vazio e escuro
entre o entardecer e a madrugada.
Não nasce a noite em lugar algum:
dar à luz supõe a claridade do dia;
a treva, o sono eterno e sem regresso.
Agora mesmo fujo à escuridão da noite,
aos pavios e néones de imitação
e navego no meu barco com o mundo inteiro
à bolina e ao sol que além me espreita.

sábado, 12 de novembro de 2016

CAIS DE EMBARQUE


Ancorada a caravela, que mais posso
se não amarrar com ela, junto ao cais
e pedir, de proa ao vento, um osso,
uma sopa aguada e pouco mais?

Já tudo está à vista; a limpo e descoberto:
dúvidas e sombras dantes cultivadas,
hoje são pobres ilhas ou desertos
sem gente, almas e outros predicados,

que não seja luto, fealdade e desamor;
consentimento de fé, gente profana,
dependendo apenas do letal valor,
seja planta, bicho, mineral ou raça humana.

Pela verdade, voltando ao ponto de partida,
desenhado no cais, parede da memória,
que posso ser, quem me dá o silvo de partida,
onde acabo eu e começa a história?

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

DAS ÁRVORES



Alegria incompleta onde as palavras
nidificam entre pássaros e metáforas

em cada madrugada tingem mais de pólen
e sobressalto o empedrado das avenidas
das solenes avenidas com bar ao fundo

respiração avulsa e inquietude
é quanto as árvores podem dar-nos
se ainda tivermos tempo e fingimento

terça-feira, 8 de novembro de 2016

DAS PEDRAS


Gritam até ao limite do silêncio
- única manifestação consentida
que se saiba conhecem o segredo dos sismos
e a religião das sementes estéreis
não se provou que calem
as lágrimas dos pássaros vagabundos
e enquanto projécteis é irrelevante
investigar se dormem

afinal de contas as pedras são o que são
embora não se dê por isso

domingo, 6 de novembro de 2016

MEMÓRIA DE CASTELO BRANCO


Não foi tão diluviana a enxurrada
de há sessenta anos, nem o tufão
foi coisa de mazela amargurada;
mas aguaceiro fraco também não…

É certo que esbulhou as avenidas
e arrebatou o coreto do passeio
mas, passado o susto fez despedidas,
 e logo se dissipou, tal como veio.

Morreu gente, sim, e feridos houve
dos maus ventos em reboliço;
mas também houve povo que não soube
ou não se ateve, ou deu por isso.

Mal sabíamos que, tempo passado,
ressarcidos, haveríamos de ganhar
a polis pós-moderna, qual tornado,
trazendo entulho de volta ao seu lugar.

Se outro vento igual nos castigar,
( longe vá o agouro!) se bem não há-de,
mal já não fará, que nada há para levar,
nem restos de memória da cidade…

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

ECOPONTO DE ENCONTRO


Não se dão ao luxo
de vir cá’baixo
despejar o lixo

Metem no embrulho
estorvo e entulho
preso com atilho

Até certo ponto
a mais neste assunto
só o ecoponto

Vidro papel plástico e ferro
tudo ao barulho
deixo o alerta:
um dia dá o berro

Verde azul e amarelo
(respectivamente) fica aqui dito
mas se for daltónico
está lá tudo escrito

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

FINISTERRA


Chegada ao fim, que quer a terra ao mar?
É sede ou pressa de ali se dissolver?
Que pode querer a terra se não continuar,
achar caminho, tentar sobreviver?

Mas se é o mar que adentra insaciado
em cada quinhão de terra, nos areeiros,
então façamos nós o que nos têm ensinado
e sejamos, enfim, eternos marinheiros.