sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

TRÂNSFUGAS



Não fujas
tu és todos os lugares
não te escondas
entre cortinados
que tu mesmo teceste
não finjas
desconhecer Setembro ou Novembro
que aceitaste
com argumentos contrafeitos
e que mais tarde sacudiste do capote
que não era nada contigo
dispara à queima roupa
verás o meu sangue ganhar terreno
ah a tua pressa

pode lá haver quem a denuncie!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

PALPOS DE ARANHA



Passam-se coisas estranhas
ou, pelo menos, esquisitas:
na terra dos parasitas
anda tudo às aranhas,
salvo as ditas.

Passando aos pormenores,
há os que por acaso mero
tecem teia a partir do zero:
aracnoexploradores,
salvo erro.

Usando de baba e peçonha,
são servidos de bandeja
mesmo que a gente não veja
por outros bichos sem vergonha,
salvo seja.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

CACOFONIAS


Ela lá e ele, do lado de cá,
disse olá.
Fez eco lá; ouviu ela acolá.
É boa, olá lá.

O constant’ hino
tocado sem destino
tocou-me o tino
desde menino:

(“lavamos catandirrindo
levados, levados, sim…”)

Dirão na morte a perda,
oh morte inesperada!
De mim ninguém m’herda
Nada!

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

NAVEGAR


Uma onda que nos cega?
Mais faltava que tapasse
quem no alto mar navega!
O que não vê, não cega
e se quem vê, não avista
não deve perder de vista
a onda de cada refrega.

O sonho que ali se esconde
ao ritmo da preia-mar
pode avistar-se até onde
em terra alguém que responde
-Ó do mar, ó do mar!
não te deixes naufragar
não te deixes ir na onda.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

VERSOS ACOMODADOS


Debaixo da mesma bandeira,
qual arco-íris de luz e cores,
o tempo mantem-se no Continente e na Madeira;
menos uma hora nos Açores.

Se tem cura, que deus o guarde;
se peca, que deus seja complacente.
Mas se deus não releva, quando já é tarde,
não passa  de adjectivo omnipresente.

Meias verdades, mentiras, louvaminhas e cantigas,
aqui, onde é bom de ver,
são virgens todas as raparigas
até deixarem de o ser.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

AMAR-TE


Quero que as nuvens sintam inveja por continuar a amar-te,
apesar da chuva.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

POR UM PRATO DE LENTILHAS


"A árvore quando está sendo cortada observa com tristeza que o cabo do machado é de madeira "
- provérbio árabe 
As voltas que a vida leva:
o parceiro a seu lado
é um inofensivo machado
que, não tarda se sobreleva,
e à força bruta destrói
o amparo na criação
sem sentir quanto dói
decepar a própria mão.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O BICHO


O bicho não é bicho inteiro:
na verdade, metade é bicho,
a outra metade lixo,
para o fazer de corpo inteiro.

O bicho tem peçonha:
cospe, baba-se, o bicho.
Não tem um pingo de vergonha,
Nada a fazer, é lixo.

Diz que é pobre, miserável.
É um indigente, o bicho.
Será até um pobre descartável,
Contudo é lixo.

Quando fala, senhor da verdade,
nada diz, o bicho.
Bolça veneno, maldade,
e o discurso vai para o lixo.

E quem o louva e defende
(e pode muito bem não ser bicho)
é gente que não entende
que também é lixo.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

SENHORES DO NADA


Não é nojo e muito menos desprezo
o que sinto por esta relativa maioria.
Por esta e outras, correlativas no peso,
sinto a raiva que há muito não sentia.

O cinismo tomou-lhes conta da oração:
pregam de cátedra e com desdém,
órfãos de si mesmos, híbridos de geração
que não é gente, que não é ninguém.

Não adianta esmagá-los, as suas veias
não têm sangue. Morrem por combustão:
ardamos pois nos actos e nas ideias,
que eles esfumam-se como tiços de carvão!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

CASA


A casa é um navio
(relevem o aspecto)
que nos leva pelo rio
e nos dá cama e tecto.

Um porto de abrigo
será, e com vantagem,
assim o digo:
numa ou noutra margem.

Uma âncora? Um sextante?
Casa é tudo o que se tente:
socorro de um instante,
sempre que tenha gente…

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

MEMÓRIA FUTURA



A ideia de me encontrar num futuro remoto
não está completamente posta de parte:
eminente vate, rotulado de coisista, morto,
não se sabendo ainda se todo o verso é arte.

De uma coisa, pelo menos, tenho a certeza:
ninguém vai encontrar por ali a poesia,
que o legado em versos é somente natureza
enquanto a dita com o poeta morreu um dia.

Aplaudam, no entanto, a mágica composição
de usar palavras comuns –sombras e ardis –
e com elas tanger as harpas do coração.

E interpretem, tomem-nas em mãos, como se diz,
e cantem-nas como se fosse vossa essa canção,
que também foi para isso que um dia a fiz…

sábado, 1 de fevereiro de 2014

GENTE ILESA


A vida nem sempre é como se vê;
às vezes contradiz-se na aparência:
há dias em que a calma cansa, não sei porquê,
outros em que se chora a sua ausência.

Pior ainda é com a temperatura:
se o tempo aquece e o sol é um tição,
pede-se o frio. Mas se este vem e dura,
volta o apelo: quem me dera o verão!

É mau feitio querer sempre o que é diferente!
Mas como não ter em nós estes defeitos,
se somos o resultado de quem, exactamente,
nos compôs, em síntese, ao sermos feitos?