quinta-feira, 29 de março de 2012

DE GRITOS SE FALA

É o famoso quadro de Munch, claro

Gritar? Sim, já gritei de dor e de prazer;
de raiva e de espanto. De protesto, muitas vezes.
Gritar é algo que se faz por nós,
parecendo que é pelos outros.
Se alguma vez gritei de pânico
não me lembro. Grita-se mais
quando a guelra vermelha de sangue novo.
Agora não estou que o faça;
cansei-me dos ímpetos da gritaria,
do esforço inconsequente, dos agudos clamores.
É esforço que não compensa
e pode até dar ares de fraqueza.
Com o tempo habituei-me a morder o que é nocivo.

Sobre as mágoas mais antigas
ainda grito, silenciosamente.

quarta-feira, 28 de março de 2012

OS PÁSSAROS


1.
Todas as manhãs nos cumprimentávamos
como velhos conhecidos.
Eu, com o mal ataviado assobio de madrugador,
digo, ainda com hálito semelhante a papeis de música
e julgando o meu gesto por saudação,
mais não suscitava, para além do desassossego,
e eles, pobres deles, respondiam:
davam-me em troca música para os ouvidos
em seu chichorrobio de poucos amigos.
Os pássaros sempre nidificaram no meu peito;
aí cantam melhor ao coração.


2.
Convencido, jurei sempre: os pássaros
nunca assobiam para o lado, nunca!

domingo, 25 de março de 2012

HORIZONTES


1.
Subi às ameias para confortar de ar saudável
os pulmões e ver com os próprios olhos
o que o mundo, surpreendido no seu canto,
deixava ver.
E lá estava ele, o horizonte, tão misterioso como sempre,
insinuando que ali tudo termina
e deus se esconde ou finge parecer que é deus.
A única verdade é que os pássaros cantam
e as árvores são cúmplices dessa melodia.


2.
É a terceira vez que o casal de melros recém-aninhados
tenta iludir-me os sentidos.

quinta-feira, 22 de março de 2012

CATECISMO


O velho catecismo, surrado pelo tempo
nos azuis e vermelhos da capa, perdeu há muito
o encanto das novenas brumosas.
Racharam as bochechas rosadas dos anjos papudos
pela procura incessante do verbo, que deixou marcas
de sebo escuro da saliva usada nos cantos das páginas
e um cheiro impróprio para a santidade do caderno.
Mantem intactos os dez deveres
capazes de elevar aos céus o magote de louva-a-deus
de carne e osso
já acostumado aos incontáveis nãos da natureza.
Apela às almas doces e ingénuas:
Brada aos seus, brada aos céus.

terça-feira, 20 de março de 2012

RECONCILIAÇÃO (mais alguns poemas de João Corvo)


Preciso, urgentemente, reconciliar-me com os grilos!
Sempre que por esta altura nos juntávamos,
o conflito tornava-se inevitável. Parecia até
que já vestiam de luto pela sorte que lhes tocava.
Não era por mais serralha ou menos alface
que as coisas pioravam, não.
Tudo se prendia com a desigualdade
que entre nós existia:
As frágeis grades que me ajudavam a contê-los
eram ao mesmo tempo prisão de alta segurança
para os pobres que serviam a cantar
de asas levantadas em permanente concerto.
É urgente esta reconciliação.
A primavera chegou já com o seu tempo
empoleirado no sol ou num punhado de nuvens avarentas
- que o tempo não faz favores, faz e pronto –
e os grilos livram-se de mim.
De uma vez por todas!

segunda-feira, 19 de março de 2012

VIAGEM DE AUTOCARRO


Senhor motorista deixe que a gente,
hoje por hoje, tome o lugar da frente.
Já basta o que o mundo nos faz,
que é passar a vida no banco de trás.


É que no meio desta agitação
são sempre os da mesma condição
a tomar assento, privilégio raro,
nos bancos da frente do autocarro.


Ou então não ligue, deixe como está,
e não tarda a gente, vá ou não vá,
por atalho elege outra via,
e passa a ir à frente a maioria.

sexta-feira, 16 de março de 2012

MIRAGEM


Aquela claridade cinzenta
do luar no azulejo,
simula água, aparenta
o que avalio e não vejo.

Atraiçoado é o olhar,
julgando pelo desejo:
faz as ondas do mar
espraiar-se num azulejo.

E afinal o que vejo
não sendo água nem mar,
é talento do azulejo
quando lhe bate o luar.

terça-feira, 13 de março de 2012

O HOMEM QUE ESCREVIA VERSOS BRANCOS



Para os Meninos, Meninas e Professoras da Escola Básica S. Nuno de Sta. Maria de Cernache do Bonjardim, a quem dediquei, nos dias 6 e 7 do corrente, no âmbito do Programa Oficina da Escrita, todas as metáforas que na altura consegui…

Era um homem de saberes distintos. Moldava versos mentalmente durante algum tempo e depois escrevia-os como se os soubesse de cor. Fazia-os de memórias antigas. Todas as palavras desenhadas no papel tinham uma luz ardente. Às vezes sorria-lhes. Por mais singelas, rebuscadas ou buriladas, o homem parecia conhecê-las a todas como os seus próprios dedos, mesmo no emaranhado dos versos que guardava secretamente no cérebro até achar a oportunidade fantástica de lhes poder dar luz.
As palavras. Oh, as palavras, isso é dizer muito pouco sobre o que o homem derramava no papel… Eram astros, cometas incandescentes que a sua mão mais ágil ia traduzindo à medida que a memória ditava. Algumas riscava-as como se quisesse imitar a cauda dum asteroide, a outras acrescentava-lhes letras com luz ainda mais fogosas e a outras ainda dava-lhes uma espécie de vida humana: molhava entre os lábios cerrados e a língua a ponta aguçada do lápis e reescrevia-as ensopadas de saliva, como se suassem; como se chorassem; como se as benzesse daquela forma pagã e as soltasse para a vida efémera que é o momento da leitura.
Diariamente – por ser um período de tempo acessível à nossa compreensão – arriscava um poema; um fio de versos capazes de entontecer o mais empedernido dos seres. E fazia-o com a serenidade de sempre: o caudal das palavras percorria toda a folha de papel ao mesmo tempo que as lágrimas e todas as outras águas levavam à frente o jorro das suas inquietudes, até à conclusão apoteótica do poema.
As folhas de papel eram como que assoreadas de todo o pó e de todos os restos de escritos antecedentes e candidamente expostas à sua inspiração. Assim procedia para que a brancura dos versos não fosse poluída de matéria inconveniente.
Ao fim de cada jornada, a folha de papel continuava imaculada, com um novo poema branco e irrepetível derramado, mas em que apenas ele era capaz de ler todos aqueles versos lácteos e sublimes, que jamais alguém havia escrito. Ele e todas as crianças de olhos cristalinos como as suas folhas de papel.





domingo, 11 de março de 2012

CONVERSAS DE CAFÉ

Foto de Mário Quintas

Esses, que sempre a razão dominam;
fazem croché sem linha nem agulhas,
confessam que votaram em trafulhas,
e até à próxima latem, rebobinam.

Voltarão a cair nesta esparrela,
porque é própria deles esta sina:
quanto mais a vida lhes ensina,
mais se orgulham de andar à trela.

Escolheram por soberba a barricada
e agora sentem na pele o desconforto.
É tarde e, depois do burro morto,
para fazer já não há mais nada.

Na verdade, há! Que é reconhecer
o erro e não voltar a repeti-lo!
Mas qual quê, voltam ao mesmo estilo,
que são osso ou gente duros de roer!

sexta-feira, 9 de março de 2012

CASA MORIBUNDA


Esconde-se a casa na muralha
(encostada ao arco, por esmola)
além, a Praça, o museu, a escola
e aqui se encobre o que atrapalha.


E que vergonha tem a pobre casa
andrajosa, como indigente criatura,
três barrotes pregados à cintura,
o que já não adianta nem atrasa.


Solene, de emblema na lapela,
este sem mancha nem mazela,
evoca ainda o bispo padroeiro.


O venerável arco, sobranceiro,
faz pose ao turista a tempo inteiro,
a casa é que ninguém quer saber dela.

terça-feira, 6 de março de 2012

CIDADE TRAVESTIDA


O ar coquete e aramado da cidade
faz o olhar estrábico, contrafeito,
dá náuseas mal lhe bate a claridade,
que de adejar se lhe perde o jeito.


Os módulos do franchising estrangeiro
rompem o casario gasto e escondido
de fina vista, quer de olho, quer de argueiro,
qual gravata em pingente encardido.


Antes ou depois, o moderníssimo deserto
que, de inverno ou em pleno estio,
releva para longe o que está perto
e me deixa a alma viva por um fio.


Ah, como me divirto, andando por aí
a coberto de autênticas obras de arte!
Ferro assim e ferro assado, aqui e ali,
isso fazia eu, modéstia à parte…


Os repuxos de água são um encanto:
descuida-se o cidadão menos avisado
e, antes que a novidade cause espanto,
já tem o bárbaro esguicho no rabo.


Mas os artistas ou o arquiteto de agora,
bradam como os vendedores das feiras:
módulos, baguetes e por aí fora,
como são feitas as minhas prateleiras.


Bancos de madeira exótica, envernizados,
fingimento de aço a imitar as caravelas
e nós, bons cidadãos embasbacados,
como vivemos o tempo todo sem elas?


Só o Amato, de Lusitano nome, aponta,
mas para um lugar incerto, ao calha:
talvez ingénuo ou de pouca monta,
ou será um estranho lóbi que o amortalha?


Respiro, consumidor de vento, compulsivo,
mas não os sítios, os prédios e os cheiros
que sempre me fizeram sentir vivo
e agora matam em desvãos alcoviteiros.


Se a minha meninice foi tragédia,
singrando a pulso, ganhando a praça,
agora e na hora da vil comédia,
que outra aflição espero senão farsa?

domingo, 4 de março de 2012

AO DEUS DARÁ

Este será, por ora, o último de sete poemas que João Corvo aceitou publicar em Corpo de Poema. A próxima publicação será de novo assinada pelo autor do blogue.

ALGUMAS NOTAS BIOGRÁFICAS DE JOÃO CORVO

João Corvo nasceu em Ladoeiro, Idanha-a-Nova, no mesmo dia e à mesma hora que eu.

Ganhou o gosto pela escrita em 1974, em Cabo Verde, e publicou contos e alguma poesia no Novo Jornal, semanário daquele arquipélago.

Na década de 80 concorreu a alguns prémios literários de poesia. Por razões de honestidade intelectual nunca chegou à fala com os respectivos membros do júri, apesar de os conhecer muito bem. Além de uma menção honrosa, nada mais consta no seu curriculum.

Com o passar dos anos refinou o humor e ganhou o gosto pelo versilibrismo.

O aparente desdém da sua escrita (excepto quando aborda temas rurais da infância longínqua) revela que afinal é o amor que o move face ao ser humano e à sociedade que quer mais justa.

No início de 2012 dei com ele de novo às voltas com as palavras.

Esta série de poemas teve início em meados de Fevereiro de 2012.


Filipe II de Espanha, quando ordenou
a Invencível Armada contra os bárbaros do norte
e perdeu a frota e os marinheiros,
deveria ter concluído que Deus não vive a sul.
Ou, no pior dos cenários,
Deus, este que é o lábio belfo de Roma,
teria morrido afogado nas águas frias do Mar do Norte
muito antes Francis Drake disparar o primeiro tiro.
Mas nenhum deus morre
ou passa de um lado para o outro
sem o consentimento de um monarca como foi Filipe II,
para mal dos nossos pecados.

quinta-feira, 1 de março de 2012

NOTAS SOBRE O "TEMPO"


Sentida é a dor que me entra pelos olhos
e, por mais que magoe, não consegue
transbordar convertida em lágrimas;
antes a revolta que é caudal de outras águas.
A mesma dor que definha
as pétalas vermelhas das papoilas, lacera o vento,
que antes era brisa imaculada.
Passou o tempo das searas ondulantes,
quando o pão era já uma emergência.
Não me faço entender?
Quem matou a fonte e deixou a sede arder nos lábios?
Que foice segou a fome em vez do trigo?
Quem construiu os caminhos arrevesados?
Um dia os nossos filhos hão-de querer sabê-lo,
mesmo se ainda com as mãos nos bolsos.