segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ERVA DE SÃO ROBERTO


Folha rubra, S. Roberto, relvas da minha porta,
são pós de Maio, ervas do mês das flores.
Se as mágoas me passam ou não, pouco importa,
uma coisa eu sei: o chá tira-me as dores.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

HÁ SEMPRE UMA SAÍDA

Silveira, óleo sobre tela 95x80

No azar de cada recaída
há sempre uma saída

e se a sorte for invertida
há sempre uma saída.

Em cada batalha perdida
há sempre uma saída

e se a guerra for suicida
há sempre uma saída.

Para que prevaleça a vida
há sempre uma saída

e se a morte não for vencida
há sempre uma saída.

Se por fim não houver saída
voltar ao ponto de partida

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

COIMBRA


Amava Coimbra, até como a si mesmo,
e todas as promessas eram em si postas:
- um dia perco-me e subo a esmo,
nem que por ti escale o quebra costas…

Eu galgarei as margens loucamente!
Amanhã bato-te à porta em segredo...
Dizia, apaixonado, caudalosamente,
por basófia, ‘inda no leito, o rio Mondego.

Na manhã seguinte, trinando a madrugada,
já se omitia, da véspera, tão ousado.
Era apenas fala, sina, noite mal passada;
destino presumido no seu fado.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

MATANÇA


Do porco diz-se, coitado,
já nasceu com este fim;
sendo ele o sacrificado,
menos me martirizo a mim.

Rola o bicho no espeto,
rebola a saliva na boca:
- chega-te à frente, sê esperto,
que a carne é fraca e é pouca…

A bula, em tempo, foi paga,
as licenças estão em dia,
já só nos falta quem traga
da lombada bela fatia.

Rola o bicho no espeto,
rebola a saliva na boca:
- chega-te à frente, sê esperto,
que a carne é fraca e é pouca…

Contam-se estórias à mesa
coisas da vida e… do porco:
diz-se com toda a certeza
que vê-lo é ver nosso corpo.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O RIO E A PONTE


- Que levas tu, rio de águas,
que pedras trazes a nado?
Eu levo gente, levo mágoas,
que passam pró outro lado.

- Levo sonhos e correntes
por entre vales e montes;
levo as águas descontentes,
que passam por baixo das pontes.

Dito assim, é de crer
que a vida é vida quando
sem cessar, sempre a correr,
vai passando, vai passando…

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA DOS CHEIROS IV

Se alguma coisa em mim clama por um regresso ao passado é, sem pestanejar, o cheiro da mercearia ou, para ser mais abrangente, da loja dos irmãos Francisco e José, mais conhecida por casa dos Fusqueta.
Não sei porquê, mas os manos recusavam a alcunha. Recusavam-na com inusitada violência ou, de outra ordem mais comercial, se o cliente tivesse pergaminhos para o merecimento de engolir e calar. E até para estas ocasiões, sobretudo para estas, era preciso um certo faro, não estivessem os manos de cabelos em pé com o negócio, e nestas alturas levavam tudo a eito.
Refiro-me, no entanto, aos odores do estabelecimento. Tudo tinha um cheiro próprio e, ao mesmo tempo, era a fusão dos aromas que tudo impregnava.
Junto ao arroz, ao açúcar, ao café e ao feijão, não em sacos de quilo hermeticamente fechados e data de validade como agora, mas em gavetões de madeira que formavam um ângulo agudo de boca para cima, havia um cheiro doce, um cheiro de rara mistura de perfume oriental. Doce era também o do café acabado de moer. Provavelmente o meu preferido, o que mais me extasiava. Ao balcão da retrosaria, apinhado de aprendizes de modista, conferiam-se as cores das linhas, dos botões, dos fechos e dos tafetás com os trapos da mesma cor, subtraídos à bainha do vestido em acabamento.
- Não é bem este azul, senhor Fusq... Chico.
Tanto podia ser o início duma grande peregrinação por um azul daquele tom, como levar aquele à falta de melhor, evitando a canseira. Cheirava a pouco...
A balança decimal e os respectivos pesos em ferro, perfilados em seu redor, são para as batatas e o carvão, e destes, felizmente, não se desprende qualquer odor. Apenas deixam no ar uma nuvem de poeira fina, que em breves segundos ganha novas qualidades e desaparece.
- Escusam de se pôr aí em cima, que a balança não pesa.
Gritava o mano Francisco quando alguém mais atrevido subia para o estrado da balança, que na régua dividia por dez o peso suportado.
- Desculpe, era só para ver.
- Ver é com os olhos, não é com os pés.
Rematava o comerciante com ar de poucos amigos.
Por altura do Natal era o cheiro a bacalhau. Nada escapava ao cheiro salgado do peixe da consoada, incluindo o balcão das especiarias. Por graça, o empregado mais antigo na loja, costumava dizer àqueles com quem tinha mais confiança:
- Só com este cheiro bebia já um copo de três...
Mas ficava-se pelo cheiro e pela graça. Era um modo de falar.
- Meio quartilho de azeite, senhor Fusqueta.
- Fusqueta é o excelentíssimo senhor seu pai.
Respondia o comerciante irritado, dirigindo-se ao mesmo tempo para o engenho do azeite que, tal como o do petróleo, obtinham o líquido por sucção, proveniente de um bidão escondido sob um aparato cilíndrico de vidro, accionado por uma manivela.
- E que mais vai ser?
Perguntava o homem já com outro ar.
- Ponha-me também 250 de bolachas maria, têm cá um cheirinho...
E ficava sanado o conflito para ambos, que não há rancores duradoiros por coisas tão sem importância.
O soalho era de madeira escura, como o eram os balcões, vitrinas e as caixas para medir, ao litro, o aviamento de toda a espécie de feijão, ainda impregnado de cheiro a ervilha à mistura com o mofo das medidas. E se a freguesa mandava assentar, paciência:
- Mano Zé, traga lá o livro.
O mano Zé tinha o saber de guarda-livros e em muitas ocasiões o nariz apurado para o cheiro a calote.
- Pago ao fim do mês, fique descansado.
Talvez para adoçar a boca ou apenas querer ser simpático, o senhor Francisco acrescentava muitas vezes ao troco dois ou três rebuçados, que eram de açúcar cristalizado, mas cheiravam a mel e a doces que na verdade não continham.
- Obrigado e volte sempre.
Dizia com delicadeza aprendida em muitos anos de experiência. Com algum esforço também, por lhe contrariar o feitio irritadiço, e isso sim, empestava.
A par daquelas guloseimas, havia ainda um enorme expositor com frascos de vidro transparente, em forma de pinha, com doze qualidades de rebuçados peitorais, chocolates, chupa-chupas e caramelos, cujos aromas se adivinhavam vistos por fora, mas que só se sentiam realmente quando os frascos eram destapados com vista a servir o freguês guloso.
Em suma, foram cheiros de um tempo que não voltei a experimentar.
Quanto ao resto, não sei o que foi feito da mercearia dos Fusqueta, mas cheira-me a esturro.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA DOS CHEIROS III


O aroma que o leite e o pão quente desprendiam
quando, à porta, a vendedeira os anunciava,
percorria a rua inteira.
Subitamente, a aragem amaciava os gestos
e o corpo reagia com água na boca.
O silêncio perduraria por algum tempo
e o pregão matinal teria então um reconfortante cheiro
a sopas de leite.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA DOS CHEIROS II


Todas as salas de aula apestavam.
O fedor era húmido e também poeirento.
O giz e a esponja que lhe apagava o rasto eram os cúmplices oficiais.
Pelo cheiro não se adivinhavam os humores do mestre,
nem a resistência da sua cana de cinco metros,
nem a espessura da sua régua disciplinadora.
A predita tabuada ressequia o olfacto a qualquer um:
sobejava apenas um tímido fungar,
aproveitado para encobrir os erros de atenção.
Mas no pátio, os canteiros cheiravam a rosmaninho,
a flores sem nome e a rosas.
O intervalo era pequeno, porém, tinha cheiro a liberdade.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

MEMÓRIA DOS CHEIROS

Não havia cheiros como os da casa da minha avó.
Ah, se eu pudesse descreve-los,
reproduzi-los com palavras perfumadas!
Subia as escadas
com aromas carregados de maresias recentes,
misturados com o perfume do irrepreensível encerado
e sabia, pela corrente de ar vinda da cozinha,
que uma grande fatia de pão caseiro,
com queijo de cabra, me estaria reservada para a merenda.
Cada recanto tinha o seu próprio odor,
por isso reconhecia de olhos fechados
a geografia de toda a casa
e do meloso aroma das mãos que me afagavam o rosto,
dos lábios que me beijavam,
do regaço que me acolhia como ninguém.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

ANDORINHAS


Em Janeiro, as andorinhas agitam já o céu gelado
das manhãs deste rigoroso inverno
num desassossego a preto e branco…
O alvoroço é grande. Gritam desalmadamente.
Além, para lá da raia, chamam-lhe golondrinas.
Esse nome é agradável, parece-me bem.
Elas pouco se importam
com os nomes que lhes chamam - é o que penso -
e continuam na mesma azáfama e com a igual algazarra.
Agora, é o tempo da construção dos ninhos. Nidificarão mais tarde.
Só depois haverá tempo para, digo assim,
os estômagos, que então hão-de ser insaciáveis.
Por enquanto, fazem voos rasantes
aos telhados e também aos charcos cristalinos,
como se o fim do dia não tardasse
ou morressem na próxima madrugada.
Fecho os olhos para iludir este frio cortante
e imito a sua pressa rumo à primavera.
Esta mudança de ares vai fazer-me bem.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

ALFORRIA


Decrépita folha de águas já passadas,
jaz à sede; à míngua de atenção;
morta de mil vidas exaladas.

Prostrada, como folha seca e sem função,
não longe das demais, alpendoradas,
ei-la fruto ileso, liberto e chão.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

RECEITA


Para tanto azar e maleita:
três dias antes da morte,
dois comprimidos de sorte,
assim prescrevam receita.