segunda-feira, 31 de maio de 2010

TROCADILHOS


Troco o lábio pelo beijo,
e a boca por um sorriso,
só não troco o meu desejo
por dois dedos de juízo.

E estes, de tanto te olhar,
com cegueira figurada,
antes mesmo de tos dar,
já tenho a vista trocada.

Troco anéis, que remédio:
os dedos fazem-me falta…
para sustentar no assédio
do meu solfejo sem pauta.

Troco sinais, coisa pouca,
de forma mais recatada,
e também troco de roupa,
não me faltava mais nada!

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O TEMPO E O GOVERNO QUE TEMOS


Nos meus primeiros anos de Alentejo, como ainda hoje, sempre procurei inteirar-me de como os alentejanos interpretam as coisas e o sentido delas no seu modo peculiar de falar. Aprendi que ao vento forte e arreliador chamam busaranho e que quando o sol não abre e chuvisca (aquela chuva a que me habituei a chamar de molha parvos…) os alentejanos chamam morraçar ou amorraçar.
Num dia em que essas condições meteorológicas se cumpriam e a companhia – constituída por homens moldados na planície, com a terra e com o gado – resolvi lançar o vocábulo aprendido com eles, para me associar e me sentir mais próximo daquele colectivo que, evidentemente, só integro com o coração. Por isso, soltei no momento:
- Está a amorraçar
Teria sido a minha lança em África; a minha aproximação mais conseguida, mas saí-me mal. Um dos do grupo corrigiu-me, carregando propositadamente no sotaque, em jeito de interjeição, para que eu sentisse a reprimenda e atirou-me:
- ‘tá cabanêro!...
Esta expressão tem um significado semelhante, mas aconselha também a não sair de casa. No caso, qualquer coisa como “vamos para dentro, que isto aqui não é vida…”
Se não contasse isto, rebentava. Mas tal vem a propósito de outros desentendimentos, de que me ocupo agora.
Escrevo esta crónica em finais de Maio. A primeira redundância é que, às portas de Junho, continuemos com um tempo instável: chove e faz frio num dia, para no dia seguinte parecer que o verão chegou em força. Nada mais falso: a seguir vem um dia de Inverno, que se não nos constipa, no mínimo deixa-nos constrangidos, sem vontade de sair de casa, sem ânimo para respirar fora das quatro paredes.
As alterações climáticas constantes provocam sensações estranhas no comportamento, irritam, deprimem, fazendo com que as vontades vacilem entre o quero e o não queria. Talvez mais importante do que isto são os danos na natureza, irreversíveis, na maior parte das situações.
A segunda redundância é a semelhança que tudo isto tem (e sublinho que em ambos os casos se trata de manipulação consciente e criminosa) com a orientação política do governo que temos, como se lia num recente comunicado da CGTP, “sob o estafado argumento do défice e dos sacrifícios para todos, prepara novas e graves penalizações para os trabalhadores e para as camadas mais desfavorecidas das populações, ao mesmo tempo que cria condições para que os grandes senhores do dinheiro aumentem as suas fortunas.” As afirmações e desmentidos diários ultrapassam já o aconselhável pelo manual da incerteza e situam-se, nos dias que correm, mais do que na incompetência, na orientação premeditada de atingir quem menos meios tem para se defender, se não lutando, lutando, lutando!
Lutaremos, pois. Nem que chovam picaretas!

quarta-feira, 26 de maio de 2010

SONHAR ALTO?


Não vale a pena ter remorso
a que nos leva a imaginação.
- Antes gato de carne e osso,
que de pedra, real leão.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

DO AMOR


Que é do amor o rumo que nos leva
por desertos de areia e pedra dura?
E que é daquele outro que releva,
mas que o próprio amor não cura?

Que é do amor que sangra e dói,
que por ser amor é seu oposto,
padece de vontade e não corrói,
nascendo em cada dia já sol-posto?

Mas se o amor é a água que sacia
de um sorvo toda a sede presumida,
é também o que seca de agonia

por dentro e de forma consentida.
Corrompe para viver e, por ironia,
morrer de amor é como ganhar vida.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

A MINHA JANELA


A minha janela fechada
tem todo o mundo lá dentro,
que os meus olhos e o tempo
guardam por tudo e por nada.

Se aberta de par em par,
a janela da minha casa,
dá-me alento e o golpe d’asa
que preciso para voar.

Vejo o mundo da janela
tudo o que mexe na rua
vejo o sol e vejo a lua
só de fora a vejo a ela.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

AMIZADE NATURAL


A amizade é assim como a natureza
e só o ser humano lhe altera o curso:
aqui, se alguém vê predador e presa,
arrisca-se a fazer figura d’urso…

segunda-feira, 17 de maio de 2010

P.E.C.


€uro de mini-saia
com o vento pela frente,
mala ao ombro, pendurada,
pede dinheiro, à gandaia,
rua adiante, resoluta.
Diz que é moeda honrada
e não passa de prostituta.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

PEDRA ANTE PEDRA


A pedra da sabedoria
era a pedra de Pedro.
A pedra pensava,
a pedra falava
e pedra após pedra,
juntou Pedro um monte
de pedras,
umas para atirar logo
e outras para atirar depois.
Pedro era pedra
e disse: depois de mim
virá quem m’herdará a pedra.
E foi uma perda de tempo.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

FADO


O casamento do cigarro
com a cigarra
não deu certo:
ela cantava, cantava
de partir o coração,
ele deu-se ao vício
e queimou
a relação

segunda-feira, 10 de maio de 2010

DEUS DARÁ


Minuciosa teimosia tem a mosca:
mata-nos a paciência
até que as vísceras lhe rebentam pela boca

um pouco como a mão
da providência:
um bom insecticida sempre tem razão.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

POETA AMADOR

foto google
(Porque os amigos me pediram, abrirei os comentários a partir de hoje)


Estamos a atrapalhar a poesia
cai-
nos o verso na sopa
e nos anais a azia
à flor da boca

não há vida a
perder
nem o mau hálito latente
solidariedade a haver
duma escova de dentes

o que estamos
é a atrapalhar o ofício
poeta é com p maiúsculo
e alvará
atento venerador
estás a perceber pá?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O PATO


O pato tinha de seu
duas patas
e a pata dos seus
patos.
Sedento de mais
patas,
um dia, sem querer,
meteu a pata
e a pata dos seus patos
disse: vai e não me em
pates

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A VELHA


O bicho tinha por baixo
um bicho
e, por baixo deste, ainda
outro bicho.
Ah, o bicho de cima
tinha bicho,
mas a velha não sabia.
A velha lavava, limpava
e varreu-os todos
para o lixo.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

CARAVELA


Se não sopra o vento

pára o tempo.

Sai caro

navegar à vela,

sai

caro à vista,

sai, cara

vela.

domingo, 2 de maio de 2010

TEM TODA A RAÇÃO

Por ambos cuspirmos na sopa,
quando nos salta o
caco,
não somos da mesma tropa,
nem farinha do mesmo saco.