segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ALÉM


Partiram os homens em barcos e sonhos;
e com palavras e nomes próprios;
e âncoras, e pólvora, e orações, e capitães
que comandavam tudo isto.
Ao largo, inventaram canções, os homens,
e cantavam com palavras e nomes próprios,
até que a terra aparecida lhes dissesse:
- Estou aqui!
E os homens, interrompendo a cantoria, gritassem:
- Terra à vista!
De regresso, os homens traziam barba de muitos dias,
gente e coisas raras com palavras e nomes próprios,
que os homens não sabiam explicar,
porque não era a mesma linguagem dos sonhos,
nem ofício de náufragos,
nem mister de marinhagem.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

DAS MÃOS



Quis soltar as mãos
ao encontro dos teus frutos.
Senti-as contornar os relevos do lençol,
com cuidados de serpente,
e, como gatos, subirem
ao cume dos teus seios de água.
Mergulhei então a pele
em cada poro do teu corpo
e tu nada saberias se as minhas mãos
não fossem cúmplices da nossa vontade.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

SEGREDO



Podia ser flor,
pedra
ou somente um par de asas
dum poema antigo.
Podia ser laranja,
gomo a gomo.
Esse é o meu segredo e não o digo.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

DA FÉ



Creio na predestinação do homem
e na cumplicidade da sua mulher original,
exceptuando as inocentes e virgens,
que os anjos e arcanjos protegem, encolhendo os ombros
largos e complacentes.
Creio na capacidade de perfuração das balas,
na precisão milimétrica dos mísseis intercontinentais
e na utilidade para o ocidente
da propagação, via satélite, de todos os discursos
do presidente norte-americano de serviço.
Creio no cancro de estômago e no salário mínimo,
apesar dos relatórios oficiais, creio
na perseverança do bicho-da-seda e da formiga
e no imperturbável sono dos ursos.
Creio nos acidentes de percurso e nos percursos sem acidentes,
na oportunidade ou favor de um etc,
mesmo antes de compreender o gargarejo,
a ladainha e os supositórios
a que qualquer ilusionista recorre
perante a mais inocente das enxaquecas.

Do que não estou certo é se é de vinho ou água benta
a bebedeira dos dias em que nada acontece,
oh providenciais taberneiros.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

VERSOS LAMPOS



Tenho assistido à vida com alguma bonomia:
ora cavalgando versos, ora eles a mim
- que uma coisa é o poema e outra a poesia –
antes que o diabo as teça com outro fim.

Há coisas bem piores, bem mais escusadas,
que esta de lidar com palavras nuas e vesti-las;
pior seria abandoná-las ou deixa-las encravadas
na garganta, sem mais remédio que cuspi-las.

Mas para dizer verdade, uma vez que seja,
confesso que há duas coisas bem diferentes:
uma é a mágoa de um verso, se lacrimeja,
diferente, é o suplício de uma dor de dentes.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

MEMÓRIA


No baú, uma velha alma dobrada em quatro,
aparentando ainda já ter tido melhores dias,
e o fóssil de um soneto inglês, numa folha A4,
além da caixa, sempre a caixa das fotografias.

A memória, como glicínias, floria exuberante
em cachos de versos de admirável aparato.
Nada mais enganador: pó, um poeta debutante,
alguns erros de ortografia e um frívolo retrato.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

UM LIVRO ESTRANHO



E por que não um deus bom aqui deitado,
ainda que fingindo o sono, pois não dorme
o que é omnipresente, ente inspirado,
dá conforto, vivifica e mata, e mata a fome.

E em verdade me diz a copiosa literatura,
enquanto me aconchego, lençol adentro:
- Eis o caminho, a chave e a fechadura,
e se resguarda a sete chaves por dentro.

Esta é a palavra e todas as palavras ditas,
o que se vê e mesmo o que não se nota:
metáforas, alucinações e alegadas visitas;
ensaia o sono dos justos, adeja e faz batota.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

PORTUGAL



O meu lugar é aqui: Portugal.
País de costas, mais que fole,
a bem dizer, todo litoral
e, de herança cósmica, o Sol.

Tem ao meio Lisboa, a capital
de dez milhões. Do império?
Falamos de que país, afinal
para levar a coisa a sério?

Há um incensado interior
listado em blocos de notas.
- Quando mal, nunca pior,
era melhor um par de botas!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

POEMAS (ANTIGOS) PARA VER

A qualidade gráfica dos textos que se seguem não é boa. Há até situações em que os caracteres ficaram no tinteiro... E não adianta muito dizer que foram copiados de um livro - Poesia de Costumes - que editei há quase trinta anos. De facto, nessa altura, a impressão ainda era feita com barras de chumbo, que as velhas linotypes produziam. Mas tendo isso em conta... O que mais interessa é que quero partilhar estes "poemas visuais" que em tempos experimentei e que o "Ida e Volta" (recente) me fez lembrar.




quarta-feira, 11 de novembro de 2009

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

DOIS EM UM



- Não sejas maricas, arranca!
- Tem calma, pá, deixa ver se está tudo em ordem.
- Deixa-te de tretas, tens é miufa...
- Não é isso: se fosses tu a conduzir...
- Olha, olha, se fosse eu. Se fosse eu, verias.
- Está tudo em ordem, pronto.
- Vá, arranca, antes que a velha comece a atravessar a passadeira.
- Ainda não percebi a tua pressa...
- Ó pá, não é pressa, é genica. Agora é bem feita: hás-de esperar um ano que a velha passe.
- Não digas asneiras. Primeira. (2ª,3ª, 4ª, 5ª). Já estás mais sossegado?
- Passa-me esses empatas. Vai aí a pisar ovos.
- Falta pouco para sairmos da localidade, não te precipites.
- Quero ver! Por este andar, nem amanhã de manhã!
- Cá está. Vamos pela IP ou queres ir a corta mato?
- A corta mato? És parvo?!
- Vamos pela IP.
- Acelera, porra!
- Vamos a 120, para o caso de não teres dado por isso.
- Vamos mas é atrás dessa lata velha, e ainda por cima é uma gaja a conduzir.
- Está ultrapassada. Satisfeito?
- Se eu não falasse, ainda agora vinhas nas encolhas.
- Bolas!!!
- O que foi agora?
- Olha para aquela fila de camiões a seguir à curva.
- Então? Qual é o problema?!
- Não é um, são dois: os camiões e tu que não te calas.
- Já não digo mais nada.
- Isso. Amua, fazes bem.
-...
- (oh pá, uma tangente!) Já passou a birra? Viste como papei os quatro camiões seguidinhos? Foi canja. Não dizes nada?
- Não querias que estivesse calado? Não fazes outra.
- Tens é inveja, cala-te!
- Outra vez?
- Eh pá, não sejas estúpido. É uma maneira de dizer.
- Por que é que afrouxaste?
- Não viste a placa de 80?
- Valha-me S. Cristóvão! Só me faltava esta... vês uma placa a cascos de rolha e pões logo o pé no travão. Assim não ganhas para calces.
- Não sejas injusto: saímos há meia hora e já galgamos 55 quilómetros!
- Por este andar ainda te chamam o Schumacher da Alameda...
- Às vezes irritas-me. Gostava de te ver a conduzir à noite e com esta chuva miudinha, que no alcatrão é manteiga.
- Tudo te pica, gaita!!!

- Não, meu caro, tu é que não medes as consequências. Para ti é sempre estrada e o conta-quilómetros até era dispensável. É prego ao fundo e por aqui me sirvo...
- Erro. O volante fez-se para homens, não para meninas.
- Bonito! Além de alarve és machista!
- Erro novamente! Nunca ouviste dizer que o automóvel é o prolongamento do sexo?
- Prolongamento?
- Sim, o prolongamento. E que eu saiba o sexo feminino não é prolongável...
- Deixa-te mas é de preconceitos... Está demasiado escuro e chove a cântaros.
- Então continua assim, que havemos de lá chegar a lindas horas!
- Espera. O que é isto? Curva e contra curva para a direita. Não se vê quase nada. Parece um galho de árvore ali no meio da estrada...
- É uma sombra, menina Amélia...
- É? Vou passar-lhe por cima... ai!...



- Há feridos?
- Infelizmente, não.
- Infelizmente?
- Sim. Há um morto. Tentou contornar esta falha de alcatrão e só parou lá em baixo. Nem soube do que morreu...
- Há pelo menos testemunhas; alguém que tenha presenciado o acidente?
- Não. Só um morto. Viajava sozinho.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

É BEM POSSÍVEL


É bem possível que haja mundo
que eu não saiba ou não visse;
é mais provável que, no fundo,
o mundo não saiba o que eu disse.

É bem possível que me encante
– ou não – o canto do meu igual.
É mais provável que não cante.
E se cantar? – Vale o que vale.

É bem possível o apelo às almas,
o seu aplauso para meu conforto.
É mais provável receber palmas
e as não ouvir por já estar morto.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

OS OUTROS



Tardavam os apreensivos duques, subalternos,
mas aí estão, enfim, para o desassossego:
trazem pés de lã, são benevolentes e ternos,
têm dúvidas sobre se os aceito ou renego.

Atiram o barro aos prémios municipais,
às menções honrosas de qualquer evento
e arrumam-se por aí como os animais,
com o coração a abarrotar de ar e vento

São como eu, proscritos, descontentes.
De ouvidos virgens, ainda sem maldade,
- mas esta noite é noite de sobreviventes:
deitem-se comigo; fiquem à vossa vontade.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

RAINER MARIA RILKE



Este seu hábito de aceitar convites, ainda,
Rainer Maria Rilke! Não me sove a cama
com a gordura dos seus versos e rimas:
hoje quero dormir só, dispenso a sua fama.

Tinha sono e tenho agora muito mais razões
para me entregar nos braços de melhor sorte.
(Já não aturo, como antes, intermináveis serões)
- Sossegue: pode ser que durante a noite acorde…

O tempo em que deuses poisavam nos poemas
fez-me refractário, como ao lobo faz o burburinho.
Agora, se o pressinto, finjo que não oiço, fujo ao tema
e "uiva em mim a pergunta à busca de caminho".